A Democracia Procedimental de Hans Kelsen; entre o
Racionalismo
Relativista e o Universalismo
EVERTON JOBIM*
* Professor de antropologia social formado pelo
Museu Nacional/UFRJ e mestre
em ciência política no IUPERJ. E-mail: evertonjobim@
========
O propósito deste artigo é a apresentação de uma
análise integrada
do pensamento político do jurista austríaco Hans
Kelsen (1881-1973),
relacionando-o à sua teoria pura do direito,
exibindo os pontos de
convergência entre as duas perspectivas teóricas
afetas a campos
cognitivos distintos, bem como a crítica de Kelsen
às formulações
clássicas do pensamento político sobre a democracia.
O artigo aborda
também diversas outras questões relacionadas ao tema
central aqui
proposto.
Notabilizado como o principal teórico do positivismo
jurídico e um
dos mais importantes juristas do século XX, autor de
obras como
Teoria Pura do Direito (1934) e Teoria Geral do
Direito e do Estado
(1945), Hans Kelsen teve sua doutrina jurídica
submetida a inúmeras
reflexões acadêmicas por renomados juristas;
pensadores da
importância de Roscoe Pound, Herbert L. A. Hart,
Joseph Raz,
Norberto Bobbio, Miguel Reale e Carlos Cossio, entre
outros nomes
de peso do pensamento jurídico internacional.
Nascido em Praga, mudou-se com a família para Viena
quando tinha
apenas dois anos. Doutorou-se em direito, em 1906,
pela Universidade
de Viena, tornando-se professor de Direito Público e
Administrativo
da mesma universidade em 1919. Kelsen manteve
contato intelectual
com importantes nomes da vida acadêmica austríaca,
como J.
Schumpeter, Von Mises e também com o Círculo de
Viena (Schlick,
Carnap, Wittgenstein e Neurath). Crítico do marxismo
(Kelsen, 1982)
sustentou ricas polêmicas com os austro-marxistas,
como Otto Bauer
e Max Adler, sendo também um notório opositor das
idéias antiliberais
de Carl Schmitt, principal jurista do III Reich.
Seu pensamento jurídico-político exerceu grande
influência durante
a elaboração da Constituição de Weimar, que deu
forma à República
alemã, após a derrota do Reich na Primeira Guerra
Mundial e o
sufocamento da revolução comunista. O liberalismo
social de Kelsen
era muito conveniente à nova e frágil organização
institucional daquele
país.
A pedido do chanceler Karl Renner, redigiu o documento
base sobre
o qual foi elaborada a Constituição austríaca de
1920, que introduziu
o controle concentrado de constitucionalidade, sob a
competência
exclusiva do Tribunal Constitucional.
De origem judia, fugiu da perseguição nazista na
Alemanha, onde
também lecionava, mudando-se, em 1933, para a Suíça.
Em 1940,
Kelsen transferiu-se para os EUA, onde atuou como
professor do
departamento de Ciência Política da Universidade da
Califórnia,
dedicando-se intensamente ao estudo do direito
internacional.
A despeito de ser um autor amplamente discutido por
teóricos das
mais diversas correntes, Hans Kelsen é pouco
lembrado como um
importante pensador político, ou, mais precisamente,
como o grande
teórico da democracia. Por essa razão, o presente
artigo concentra as
suas reflexões no pensamento político do autor,
tendo como referência
a coletânea A Democracia (2000h), um conjunto de
textos de autoria
de Kelsen, no qual seu pensamento político é
apresentado de forma
sistemática e relacionado à sua teoria do direito.
Ao elaborar a chamada teoria pura do direito (Reine
Rechtslehre),
Hans Kelsen objetivou delimitar o campo cognitivo da
ciência jurídica,
de forma independente em relação à moral, à
sociologia e à história
do direito, excluindo, também, princípios do direito
natural e
fundamentação de natureza metafísica. A ciência
jurídica deveria
recusar qualquer critério ético universal como
princípio unificador
dos sistemas jurídicos concretos, buscando a
neutralidade axiológica.
A formação epistemológica de Kelsen, na linha do
neokantismo da
Escola de Marburgo, na qual pontificavam os nomes de
Paul Natorp,
Hermann Cohen, Rudolf Stammler e Ernst Cassirer,
apontava para a
necessidade de se constituir um método unitário de
observação da
realidade – um método puro – para cada ciência,
mediante a
delimitação homogênea dos campos cognitivos. O
projeto teórico-
metodológico do positivismo kelseniano consiste em
estudar, de modo
objetivo, as relações internas que se estabelecem
nos sistemas jurídicos;
o modo como as normas são produzidas a partir de
outras normas e
a relação lógica entre elas. O sistema normativo,
segundo o positivismo
jurídico, caracteriza-se pela completude, coerência
e autonomia; sendo
constituído por normas válidas de caráter coercitivo
que conferem
sentido jurídico às ações humanas (Kelsen, 2000d).
Para que o encadeamento normativo não se prolongue
ao infinito,
Kelsen pressupõe uma norma fundamental hipotética
com o objetivo
de fechar o sistema, a chamada Grundnorm (idem). A
norma
fundamental é a norma limite – intranscendível – da
qual, portanto,
não se poderá encontrar uma norma anterior como
origem. O sistema
jurídico kelseniano, por definição, não se funda
sobre um elemento
fático, mas no próprio direito. A norma fundamental
é, precisamente,
este fundamento último do sistema, que lhe confere
validade (idem).
Dentro do sistema normativo, a Grundnorm tem uma
dupla função:
conferir unidade e validade ao ordenamento jurídico.
A inspiração é
manifestamente kantiana. Segundo Kant, a razão
sempre aspira
conhecer um nível superior incondicionado. Na
Crítica da Razão Pura
(1781), ele demonstrou que, para alcançar um
conhecimento dos
objetos da experiência, a razão necessita estabelecer
limites através
da faculdade da imaginação, ou Einbildungskraft, que
tem como
função sintetizar as percepções. O jurista, atuando
como epistemólogo
que pretende delimitar o campo do direito, de forma
puramente
racional, deve, portanto, estabelecer uma categoria
hipotética, uma
abstração, para proceder a essa delimitação. A
mediação entre o
sensível e o inteligível é realizada por uma
categoria lógicotranscendental
pressuposta. A Grundnorm nasce, portanto, da
necessidade da Ciência do Direito de definir um
ponto limite para a
observação dos fatos estudados.
As idéias de Kelsen sobre a natureza e a
operacionalidade da norma
fundamental, a relação entre o direito nacional e
internacional, o
caráter imperativo da norma jurídica, as
possibilidades de
interpretação da lei pelos magistrados produziram
inúmeras
controvérsias entre os juristas.
Nos termos do positivismo jurídico, ao juiz cabe
aplicar a lei, ou seja,
subsumir o caso concreto à norma abstrata
correspondente. A norma
legal vale por si, ela não tem seu peso relativizado
em função das
modificações de avaliação da opinião pública em cada
contexto
histórico. São extremamente limitadas as
possibilidades de
interpretação da norma jurídica, no âmbito do
positivismo. As normas
devem ser entendidas com a máxima objetividade
possível.
A efetividade da norma é condição imprescindível
para a sua validez.
É preciso que a norma seja, sempre, ou em algum
momento, aplicada,
obedecida pelos indivíduos no plano empírico; a
norma sem eficácia
não é norma válida. A norma fundamental estabelece a
eficácia como
condição de validade das normas em geral. A
normatividade depende
do fato de os homens aplicarem e obedecerem a norma
criada. Deve
haver, portanto, uma relação mínima entre a norma jurídica
e o plano
empírico. É necessário, pois, que a norma tenha
alguma efetividade
observável. O direito válido é criado pelos homens,
como sujeitos, e
aplicado com eficácia, segundo as normas do próprio
sistema. O direito
é, assim, a relação lógica entre normas através das
quais os indivíduos
se relacionam; a forma normativa das relações
sociais.
Para Kelsen, fiel ao kantismo, o direito é pensado
na distinção entre
o fato e o valor, ou entre aquilo que é (sein) e o
que deve ser (sollen).
A norma jurídica é o campo do dever ser, enquanto o
mundo dos
fatos e dos valores, ou a realidade externa ao
direito, é o mundo do
ser. A Ciência do Direito, para Kelsen, só se ocupa
do mundo das
proposições jurídicas ou das normas abstratas, do
mundo criado pelo
legislador. O direito é estranho ao fato empírico
exterior, sua realidade
é exclusivamente o dever ser, ou a ordem formal de
apresentação das
normas, na qual se expressa a vontade do legislador.
Atos humanos juridicamente relevantes são aqueles
vinculados ao
conteúdo das normas, e quando a ação individual
contraria o conteúdo
da norma eficaz, entra em ação a sanção
juridicamente prevista
(Kelsen, 2000d). Há, pois, uma tensão entre o que
diz a norma e a
vontade dos indivíduos. O pensamento de Kelsen, por
essa razão, ou
seja, por não admitir a existência de norma
completa, sem a previsão
de seu descumprimento, com a tipificação da sanção
correspondente,
pode ser entendido como um sistema de coerção
organizado: sem
coerção, não há direito.
Nos termos de Kelsen, a norma válida é aquela
elaborada através de
procedimento informado por norma anterior, que passa
a ser dotada
de eficácia. A teoria pura do direito não exige,
como condição de
validade da norma jurídica, a participação de todos
os indivíduos no
processo de elaboração das leis. O procedimento de
criação das normas
– a nomogênese – não exclui, portanto, regimes
políticos, ao contrário
da teoria política de Kelsen. Desse modo, tanto a
democracia (direta
ou indireta), quanto a autocracia, são regimes ou
procedimentos
válidos de elaboração das normas jurídicas que
regulam e dão forma
à vida social.
A teoria política de Kelsen não acolhe os princípios
filosóficos da
democracia de caráter idealista, que a definem como
um regime
fundado na soberania popular ou na representação da
Vontade Geral.
Segundo sua perspectiva doutrinária, de orientação
racionalista, céticorelativista,
tais princípios são apenas fórmulas metafísicas,
destituídas
de realidade objetiva. O povo, para ele, é uma
ficção. O que se chama
ordinariamente de povo, é, na verdade, um conjunto
de indivíduos
dotados de direitos políticos, unidos sob os
vínculos estabelecidos
pelo sistema comum de normas e que possuem os mais
variados
interesses e valorações sobre o mundo (Kelsen,
2000g:141). A unidade
desses indivíduos, para o direito, é definida pelo
sistema normativo a
que se submetem. Fora do que é definido pela norma
jurídica, o
indivíduo rege-se pelo conjunto de valores e
princípios que melhor
lhe aprouver, nos balizamentos do que é permitido
pelo ordenamento
jurídico. Esses aspectos da ação humana são externos
ao direito, pois,
para Kelsen, o direito só trata da moral ínsita ao
ordenamento jurídico.
Ao negar os princípios idealistas da democracia, as
reflexões de Kelsen
aproximam-se da interpretação do economista Joseph
Schumpeter,
exposta na obra Capitalismo, Socialismo e
Democracia, de 1942, que
pensa o regime democrático como um mero processo de
escolha,
pelo eleitor, de propostas políticas que se oferecem
no processo de
disputa eleitoral. Schumpeter considera a chamada
Vontade Geral
um princípio metafísico, do qual se deduzem outros
princípios que
servem para justificar formas de organização do
Estado. Para ele, a
Vontade Geral é, na verdade, um somatório de
inúmeros interesses e
valores diferentes, reunidos em uma escolha política
comum (uma
sigla ou um candidato), sem que necessariamente
exista algum
princípio unificador na escolha realizada sob a
regra da maioria. Na
mesma obra, Schumpeter questiona também o alegado
mérito
intrínseco, atribuído à democracia, de permitir que
o indivíduo
disponha livremente sobre os assuntos públicos,
manifestando sua
opinião sobre as questões que lhe dizem respeito.
Isto porque esta
escolha, a princípio livre, não se processa
necessariamente em termos
racionais. Ela pode ser fruto de uma opinião
individual que não ganha
forma, de modo mais elaborado e consciente pelo
eleitor, mas sob
influências estranhas à vontade consciente e
plenamente senhora de
si.
Apesar da aproximação do pensamento de Kelsen em relação
à tese
procedimental de Schumpeter, ele desenvolve
argumentos que
recolocam a importância e o valor da democracia em
outros termos.
Será a partir da abordagem procedimental da
elaboração das normas
jurídicas que Hans Kelsen poderá hierarquizar as modalidades
de
organização política, colocando a democracia no
topo, como a forma
mais racional de criação normativa (Kelsen,
2000g:184-185).
A seu modo, Kelsen apresenta o valor e a importância
da democracia.
A democracia possui uma regra determinada, ou um
procedimento
bem organizado de produção e ordenação das normas
jurídicas, sob
o princípio da legalidade, ou seja, do império da
lei, que propicia
segurança jurídica aos indivíduos (idem:185). É
sempre a norma
anterior que delimita a vigência das normas
posteriores, e os riscos
causados pela incerteza, sob as variações da vontade
discricionária,
são neutralizados pela democracia.
A autocracia, por sua vez, tem pouco apreço pelo
princípio da
legalidade e da hierarquia normativa. Nela, o
sistema jurídico fica
submetido ao arbítrio do governante, não havendo
concatenação
lógica necessária entre as normas. Segundo o
normativismo de Kelsen,
todo quadro de exceção legal deve ser previsto por
norma anterior.
Na autocracia, o princípio da legalidade, ainda que
não ostensivamente
violado, pode ser tratado de forma pouco rigorosa,
sem definições
normativas mais precisas (de modo genérico e
incerto), com o objetivo
de facilitar a discricionaridade na hora da interpretação.
Outro aspecto que garante a superioridade da
democracia decorre da
perspectiva teórico-metodológica do positivismo
kelseniano. Kelsen
adota o relativismo epistemológico no campo da
teoria pura do direito
e declara que valores absolutos inviabilizam a
democracia e a tolerância
a ela inerente, afastando-se assim de perspectivas
filosóficas como as
de Platão e Hegel (idem:164, 210). O relativismo,
para ele, é uma
barreira à autocracia, ao contrário das filosofias
(e das teologias), que
concebem realidades absolutas, favorecendo a
emergência de regimes
autocráticos. Na democracia, pelo fato de os homens
reconheceremse
como livres e iguais, todas as opiniões podem ser
apresentadas e
discutidas, o que é impossível na autocracia.
Na religião, ocorre uma transferência da
responsabilidade de decisão,
do plano da autonomia individual, para aquilo que o
corpo clerical
propõe como merecedor de obediência, em conformidade
com a
autoridade de seu magistério (idem:248-250). Na
democracia, ao
contrário, a autonomia individual é respeitada; a
democracia possui
uma razão que não escapa ao alcance da razão
individual e do seu
poder de decisão (idem:184).
Não obstante isso, Kelsen entende a transformação do
Estado
metajurídico em norma, ou a autolimitação do Estado,
de modo
equivalente ao mistério da Encarnação do Verbo na
teologia cristã; o
fenômeno transcendental do infinito expressando-se
no finito. O
Estado, com poder ilimitado, transforma-se em norma
fundamental,
fazendo nascer a ordem jurídica (Kelsen, 2000a:342).
Ele dialoga
com o pensamento teológico de Reinold Niebuhr e Emil
Brunner,
autores que atacam o relativismo axiológico do
positivismo jurídico
como propiciador do totalitarismo.
Argumentam os teólogos cristãos que, sem valores
absolutos,
alcançáveis através do direito natural ou do direito
divino, as portas
do direito ficam abertas ao totalitarismo (Kelsen,
2000g:229).
Conseqüência necessária da ausência de uma
fundamentação sólida,
de caráter jusnaturalista ou metafísico, da doutrina
positivista.
Afirmam que, a princípio, qualquer governante de
perfil autoritário
que logre promover uma alteração constitucional,
instituindo uma
nova norma fundamental, concatenando as normas
inferiores com as
superiores, poderia erigir um sistema
jurídico-político válido nos
termos do positivismo jurídico. Kelsen não ignora
esse paradoxo do
regime democrático de propiciar liberdade até para
os seus inimigos,
mas entende que a democracia, sob os balizamentos do
regime
constitucional, possui instrumentos jurídicos e
políticos eficazes para
impedir a sua transformação em uma autocracia.
Dialogando com os teólogos protestantes citados e
incluindo o
pensador católico Jacques Maritain, Kelsen
desenvolve sua crítica às
tentativas de se conferir uma justificação absoluta
à democracia através
da teologia cristã. A democracia, como assevera o
jurista austríaco, é
sempre um valor relativo no âmbito do cristianismo,
não existindo
uma relação essencial entre a democracia e a fé
cristã. Os cristãos
estão circunscritos, por sua doutrina, a um conjunto
de valores dos
quais não podem abrir mão; mesmo que algum grau de
liberdade de
opinião e divergência possa se verificar no seu
interior. Kelsen
argumenta, também, em relação ao direito natural,
que existem
concepções divergentes nesse campo, e algumas
correntes
jusnaturalistas afirmam mesmo o caráter variável de
seu conteúdo.
Dessa forma, fundar um sistema jurídico sobre o
direito natural não
constitui fator de garantia em face dos alegados
perigos do relativismo
axiológico. Segundo Kelsen, o relativismo axiológico
é a única via
consistente para a vigência da democracia.
A democracia será considerada o melhor regime, o
regime que supera
todos os demais, se os critérios utilizados nessa
avaliação forem a
racionalidade na elaboração das normas e a aceitação
da irredutível
igualdade e liberdade entre os homens. Se forem
outros critérios de
referência, a democracia não poderá ser considerada
a melhor escolha.
Há, portanto, uma real afinidade ou paralelismo
entre a metodologia
do positivismo jurídico de Kelsen e sua teoria da
democracia. Kelsen
não pode afirmar a democracia como forma superior de
organização
política em relação a todos os valores possíveis de
serem utilizados
como critério, porque não admite valores absolutos
em sua teoria. A
única forma de considerar a democracia o melhor
regime é,
paradoxalmente, absolutizar alguns valores como
critério.
Só poderá haver democracia, nos termos de Kelsen, se
for admitido o
relativismo valoral e a escolha livre desses valores
pelos indivíduos.
O fundamento do modelo relativista de Kelsen são
indivíduos
racionais, livres e iguais diante de uma
incomensurável diversidade
de valores (idem:169-178). Contudo, ao tentar expor
o modo como
a democracia se torna o melhor princípio para os
homens organizarem
as relações de poder, a partir de uma hipotética
escolha livre e racional,
a argumentação lógica de Hans Kelsen cai numa
circularidade. Isto
porque só poderão escolher os valores da igualdade e
da liberdade, e
assim o regime que lhe é mais adequado – a
democracia – os indivíduos
que já se encontram em uma condição ontológica de
igualdade e
liberdade, ou seja, libertos das influências dos
poderes heterônomos
da autoridade metafísica e das paixões, que os
afastam do julgamento
racional. Indivíduos que se consideram livres e
iguais – escolhendo
valores de modo racional – escolherão,
necessariamente, a liberdade
e a igualdade. Alguém que se considere igual aos
demais não aceitará
ser senhor de seu semelhante; só pode querer a
liberdade para todos.
E quem livremente pode deliberar sobre o futuro de
sua condição
não terá razões para submeter-se à vontade
arbitrária de outro. Os
indivíduos, portanto, só escolherão valores
diferentes da igualdade e
da liberdade se negarem a sua condição ontológica
fundamental. Dessa
forma, a escolha da democracia não possui caráter
funcional em
relação a valores livremente eleitos pelos
indivíduos, mas constitui
uma necessidade ontológica. Nesses termos, a
democracia não deveria
ser considerada a forma mais racional de elaboração
das normas
jurídicas, mas sim, a forma racional de constituição
dos regimes
jurídico-políticos.
Kelsen não aceita o princípio metafísico do livre-arbítrio,
segundo o
qual a vontade livre do homem é sempre o início da
série causal. O
homem é responsável por seus atos porque é racional
e não porque é
livre de modo absoluto, como proposto nos termos
metafísicos. A
liberdade metafísica, segundo Kelsen, deve ser
substituída pela
liberdade racional, submetida à imputação normativa,
aquela que
determina a conduta justa e veda a conduta
socialmente inaceitável
(idem:171). Para Kelsen, o homem é livre quando
submetido à lei da
razão, ou seja, quando pode decidir liberto das
influências dos poderes
heterônomos da autoridade de fundamentação
metafísica. Ele rejeita
as teses metafísicas que afirmam o governo completo
do mundo
natural e social pela vontade divina e verifica uma
contradição na
doutrina cristã que afirma o livre-arbítrio do
homem, ao lado da tese
do completo controle divino sobre o curso natural
dos acontecimentos
(idem:170).
Kelsen critica o conceito de liberdade natural
absoluta como
formulado por Rousseau. Esta liberdade pré-social,
uma vez
transformada em liberdade política, não admite
partes subordinadas
no processo de formação da Vontade Geral.
Pelo fato de a Vontade Geral, nos termos de
Rousseau, não reconhecer
autoridade deliberativa à minoria, em face da vontade
majoritária, a
posição da minoria será considerada estrangeira e
excluída do contrato
social, ou representada pela vontade da maioria, que
trará consigo
também a minoria. Minoria coagida a ser livre por
aqueles que
identificaram o bem comum, coincidindo a sua vontade
particular
com a Vontade Geral. O indivíduo, mesmo que não
queira ser igual
em sua opinião com os demais, é forçado a sê-lo.
A existência da minoria, em Rousseau, portanto, não
impede a
formação da Vontade Geral, apesar da exigência da
unanimidade.
Aceitando a existência de duas vontades, uma
legisferante e outra
destituída dessa autoridade, Rousseau não esclarece,
contudo, por
que uma opinião minoritária, uma vez tornada
majoritária, não
poderia ser considerada legítima.
Se a Vontade Geral é constituída a partir da
agregação das decisões
individuais, ela pode ser modificada, em
conformidade com a alteração
da vontade individual. Mas se ela for uma razão
geral, objetiva e
independente, em relação às vontades particulares, ela
irá se impor a
essas vontades, definindo a verdade, que deve ser
seguida por todos
(ou pelo maior número). As proposições de lei,
durante as votações,
serão, nesse caso, avaliadas como sendo compatíveis,
ou não, com
essa Vontade (idem:174-177).
Kelsen, portanto, na tentativa de escapar da
armadilha metafísica da
Vontade Geral; propõe que aqueles indivíduos que não
seguem a
maioria poderão continuar a existir como minoria. A
sua proposta
racionalista baseada no relativismo filosófico é uma
via para a solução
da contradição verificada entre a existência da
Vontade Geral e das
vontades particulares na elaboração do contrato
social e na sua
sustentação.
A partir de uma constelação original de valores
relativos, os indivíduos
escolhem a igualdade e a liberdade, e assim a
democracia, como o
regime mais adequado a esses valores. E, logo em
seguida, necessitarão
compatibilizar essa escolha com a diversidade de
valores que continua
a vigorar no interior da ordem democrática. Kelsen
afirma que a
síntese democrática, entre liberdade e igualdade,
está na base da idéia
relativista entre sujeito e objeto de conhecimento
(idem:180). Seu
relativismo filosófico deseja superar tanto o
solipsismo, que só
reconhece o mundo do sujeito, quanto o pluralismo
absoluto, que,
admitindo a existência de outros sujeitos, reconhece
a existência de
uma pluralidade de mundos, sem a possibilidade de
comunicação
entre eles. Se não é possível afirmar a objetividade
de cada mundo
concebido, pode se afirmar a igualdade dos sujeitos
do conhecimento
e sua liberdade, sob a regência de uma lei comum do
processo
cognitivo (idem:166 e 167).
Na liberdade política ou social, ocorre uma
limitação mútua das
liberdades inerentes aos indivíduos. Essa limitação
da liberdade na
democracia, realizada pelo direito, é uma
necessidade para a
coexistência dos homens em sociedade, uma defesa da
liberdade de
cada um, legalmente reconhecida (idem:167 e 168). O
homem é livre
quando se submete, racionalmente, à vontade com a
qual se identifica.
Segundo a teoria democrática, é livre quem se
submete à lei com a
qual concordou. Livre, portanto, quando vota e
manifesta a sua
opinião e livre quando se encontra no campo da
maioria. Assim,
quanto mais indivíduos apóiam um conjunto de idéias,
maior o número
de “autodeterminados” ou de livres; mais pessoas
exerceram
livremente seu direito de decidir, escolhendo a lei
pela qual serão
governadas, codificando normas de conduta na forma
de direitos e
deveres; e maior, portanto, a sustentação social dos
valores que
compõem o sistema jurídico-político em questão. A
maximização do
consenso é, conseqüentemente, a máxima liberdade
possível na
democracia.
Para Kelsen, quando se fala em democracia, fala-se
em princípio da
maioria/minoria. O princípio democrático da maioria
implica
necessariamente no princípio da minoria. Do
contrário, estamos diante
de um regime autocrático, ou seja, da imposição de
uma única vontade.
A minoria, contudo, não poderá legislar, porque é a
maioria quem
tem esse poder. Entre maioria e minoria, há um
desejo comum de
viver sob um mesmo sistema, no qual é aceita a
regular alternância
de posição entre elas. A unidade ocorre no plano da
integridade do
sistema, unidade baseada na igualdade e na liberdade
dos cidadãos,
fundamento da ordem democrática. E a diversidade se
verifica em
outro plano, nas posições políticas e nos valores
portados por cada
indivíduo (Kelsen, 2000c:69-70).
Os direitos fundamentais das minorias são
assegurados por maioria
qualificada, precisamente para desestimular
eventuais tentativas de
violação. A minoria não sendo temporariamente livre,
visto estar
sujeita às leis dos majoritários, possui direitos
fundamentais
assegurados e seus membros poderão vir a ser maioria
no futuro. A
minoria fica submetida ao conteúdo normativo
definido pela regra
da maioria, mas não totalmente nem definitivamente.
Na democracia pensada por Kelsen, tendo como base o
relativismo
axiológico, uma opinião adotada pela maioria não
pode se tornar
definitiva. A minoria deve ter sempre o direito de
conservar seus
ideais, devendo ter meios de limitar a vontade da
maioria, de modo
que o sistema democrático seja preservado. A
democracia, portanto,
é um processo contínuo de identificação e
diferenciação, entre
indivíduos em relação a valores, sob uma regra
fundamental de
identidade. Valores são, permanentemente,
confrontados na arena
política; acolhidos ou rejeitados sob a regra da
maioria. Trata-se de
um conflito presente na sociedade, que se processa
de modo
institucional na esfera política. Enquanto houver
uma democracia
autêntica vigorando, não haverá conflito social
degenerando em
violência. A democracia contribui, portanto, para
desradicalizar as
posições político-ideológicas.
Segundo Kelsen, de uma maneira diferente da pensada
por Rousseau,
ocorre uma síntese entre maioria e minoria na esfera
política, que
expressa, a seu modo, a Vontade Geral; maioria e
minoria afetam-se
e limitam-se mutuamente. Kelsen não crê em idéias de
que a maioria
representa a minoria ou a Vontade Geral, mas entende
que a síntese
referida expressa uma unidade de vontade. A despeito
do fato de
nem todos os cidadãos serem participantes da
política, é possível a
presença da diversidade de opiniões através do
sistema representativo.
Há, portanto, nexo significativo entre as opiniões
sociais e a disputa
político-partidária.
Para ele, a democracia, na contemporaneidade, devido
às múltiplas
atribuições do Estado, deve se realizar por sufrágio
universal
(idem:43), sendo, portanto, representativa ou
parlamentar (Kelsen,
2000b:112). Regime no qual os indivíduos agrupam-se
em torno de
idéias nos partidos políticos e os conflitos sociais
desenvolvem-se na
disputa política no âmbito do Parlamento. Kelsen não
vê
incompatibilidade entre a democracia e o princípio
da representação,
mas concebe o sistema de representação de uma
maneira diferente
da tradicional. Se os indivíduos admitem que sua
posição de
dominância pode vir a ser alterada em relação a
outras, o princípio
democrático é viabilizado. Eles aceitam, desse modo,
a verdade do
princípio da alternância entre maioria e minoria que
caracteriza a
democracia, na forma de um compromisso. Não
significando,
contudo, que os participantes do regime democrático
tenham todos
que ser céticos relativistas. Os indivíduos que
crêem em valores
absolutos se comprometem a aceitar a não-dominância,
ao menos
temporária, de sua opinião, crendo que esta será
dominante no futuro.
Enquanto não convence a maioria do valor de sua
opinião, o indivíduo
na posição minoritária admite que outras opiniões
sejam majoritárias.
Em um regime de liberdades, como pensado por Kelsen,
os indivíduos
podem mudar de opinião legitimamente através da aquisição
de
informações e da ação persuasiva de seus
interlocutores sociais. A
maioria não possui, necessariamente, uma
racionalidade superior sobre
os temas de importância coletiva.
Kelsen não quer qualificar maiorias para que não
venham a valer
mais do que de fato valem, obrigando os indivíduos a
se agruparem
em torno de idéias que não necessariamente as suas
na origem. O
modelo democrático pensado por ele objetiva, sempre,
maximizar a
liberdade individual. A maioria simples é a fórmula
mais próxima da
pluralidade de opiniões de uma democracia direta.
A perspectiva monista do positivismo jurídico não
admite outras fontes
do direito que não o Estado. O Estado é a própria
unidade da ordem
jurídica. Ao contrário de Carl Schmitt, Kelsen
concebe o Estado como
uma associação específica no interior da sociedade,
uma associação
para o domínio (herrschaftsverband), rejeitando a
indistinção moderna
entre Estado e sociedade como pensada por Schmitt.
Kelsen afirma o
poder de imposição do sistema normativo, através do aparato
estatal,
porque possuidor dos necessários mecanismos de
coerção. A soberania
do Estado é pensada a partir do sistema de normas
fundamentais, das
quais as demais devem derivar. Sistema variável em
conteúdo
conforme as elaborações constitucionais dos
respectivos ordenamentos
jurídicos concretos. Só há direito positivo onde há
um sistema jurídico
estável e eficaz, ou seja, onde há poder de coerção
balizado pela lei.
Mas esse poder de coerção, ao contrário da Vontade
Geral de
Rousseau, não forçará os indivíduos na posição
minoritária a adotarem
a opinião da maioria como forma de encontrar, por
via paradoxal, a
sua condição de liberdade. Obrigará, sim, ao
respeito em relação a
ela, mesmo que subjetivamente contestada.
Kelsen considera a transformação, operada pela
filosofia política, do
autor impessoal da vontade do Estado em uma pessoa
ou sujeito
coletivo, uma pura abstração que não corresponde a
nenhuma
experiência política real. Esse tipo de abordagem
faz crer que o Estado
possui donos ou se caracteriza por algumas poucas
relações
dominantes. O Estado é o produto de um amplo e
complexo processo
que avalia e compõe uma pluralidade de interesses
distintos e
contraditórios entre os indivíduos (Kelsen,
2000c:92; 2000a:305,
313). O Estado, segundo Kelsen, não se reduz a uma
classe ou grupo
social.
A democracia kelseniana é o primado da lei, o
governo da lei
impessoal, à qual as instituições políticas se
submetem. O Parlamento
– órgão criado para a função legislativa – é a via
institucional através
da qual os interesses sociais conflitantes podem
dialogar de modo
regular e estabelecer consensos; sendo de
fundamental importância
nesse processo que todos os interesses sociais e
políticos se façam
presentes no Parlamento, através dos partidos
políticos, a fim de
permitir a formação de um verdadeiro compromisso
político.
Na democracia, governo da autodeterminação
individual, o chefe
político ou o líder é imanente à massa, constituída
através da norma
como princípio unificador e diretivo. Nas
autocracias, ao contrário,
o líder é transcendente à comunidade, possuidor de
um caráter
superior e paternal. Na democracia, sob o princípio
fundamental da
igualdade, todos os cidadãos podem ser chefes;
verifica-se, por isso,
uma regular alternância de chefes ou dirigentes
políticos (Kelsen,
2000c:87-88). Enquanto na perspectiva relativista,
base da
democracia, os indivíduos são necessariamente
iguais; na autocracia,
eles são necessariamente diferentes (Kelsen, 2000g:167).
Kelsen nega tanto a afirmação de que somente o
capitalismo é
compatível com a democracia, como a tese marxista
segundo a qual
só haverá democracia real no socialismo. Ele propõe
que a democracia
pode ter um conteúdo econômico capitalista ou socialista
(idem:253-
281), mas não é equivalente a um mero regime de
igualdade material,
pois a igualdade material pode, perfeitamente,
vigorar em ditaduras.
Kelsen tampouco aceita como democrática uma
alteração no sistema
de representação parlamentar favorável a um regime
de partido único.
Afirma, por outro lado, que as garantias
fundamentais do sistema
jurídico do Estado de Direito impedem que o poder
econômico exerça
um poder arbitrário sobre o regime democrático.
Kelsen analisa as doutrinas de Locke e Hegel, mas
não acolhe a idéia
de direito absoluto à propriedade privada
(idem:290-293), também
rejeitando a doutrina da propriedade coletiva
natural. Para ele, a
restrição à liberdade econômica no socialismo
democrático não
compromete essencialmente a democracia (idem:274).
Na democracia
capitalista, a liberdade econômica e o direito de
propriedade têm sido
objeto de várias restrições legais – lei antitruste,
anticartel etc. –,
além do planejamento burocrático, e não se contesta
o caráter
democrático desse tipo de democracia com base no
argumento
econômico. A democracia possui diferentes graus, que
se expressam
na divisão entre as funções de criação e aplicação
do direito, afirma
Kelsen (idem:266-268).
O Estado democrático pode se realizar tanto em um
regime econômico
capitalista quanto socialista, não havendo
vinculação necessária entre
a democracia e cada um desses regimes econômicos.
Tal possibilidade,
admitida por Kelsen, tem produzido inúmeras
controvérsias quanto
ao grau de afinidade da teoria pura do direito e de
seu pensamento
político com o liberalismo ou com o socialismo. Ele
apresenta o valor
da democracia como um fator inegável de civilização,
mas é criticado
pelos marxistas por não aceitar o argumento de
limitação dos
princípios da democracia sob o regime capitalista,
mesmo não
fechando as portas para uma democracia socialista.
Segundo Norberto Bobbio, que faz uma leitura valiosa
da obra de
Kelsen, extraindo, contudo, conclusões distintas das
dele, a obediência
ao poder constituinte estabelecido pela norma
fundamental significa
obedecer a um conjunto de forças políticas que, num
determinado
momento da história, definiram o conteúdo da norma
fundamental
sobre a qual se estrutura todo o sistema jurídico
(Bobbio, 1991:65).
A norma fundamental é, portanto, a expressão do
conjunto de idéias
políticas dominantes num determinado contexto
histórico. Sob os
princípios gerais da igualdade e da liberdade,
variações de conteúdo
normativo são possíveis na democracia. Os homens
podem ser livres
e iguais de diferentes modos (Bobbio, 2000b). Indo
além de Kelsen,
Bobbio afirma que a democracia liberal tende a
evoluir na direção da
democracia social. Ele afirma que a democracia deve
ser respeitada,
intrinsecamente, como expressão institucional da
vontade popular e
dos direitos e garantias individuais conquistados ao
longo da história
do Ocidente, mas declara, ao mesmo tempo, que não se
pode perder
de vista que a democracia é também um meio para um
fim, que é a
realização plena das potencialidades humanas através
da igualdade
substantiva entre os homens. Para Bobbio, a
democracia é um
instrumento – único válido – para a construção de
uma ordem
socialista (Bobbio, 1983:91; 1990:7). Ele não admite
vias nãodemocráticas
de construção do socialismo, reafirmando, assim, a
sua
consciência jurídica, que se expressa na importância
do respeito às
leis e às instituições. Para Bobbio, a democracia
deve escolher entre o
Estado justo – o Estado social –, ou o Estado
eficiente dos neoliberais,
que volta as costas para as suas obrigações sociais.
Erra, portanto, o
pensamento liberal ao submeter as suas concepções
sobre o Estado à
lógica do mercado, sentencia Bobbio (Bobbio, 2000a).
A evolução da
democracia liberal na direção do socialismo não é,
para Bobbio, uma
desfiguração do pensamento liberal, como propõe, por
exemplo, F.
Hayek (1990), mas o desenvolvimento das
potencialidades da própria
democracia liberal (Bobbio, 1992). O chamado
socialismo liberal de
Bobbio é, acima de tudo, um socialismo de direitos,
cuja referência
central é o respeito pelos direitos humanos. Quando
fala em ética,
Bobbio fala da inviolabilidade da pessoa humana, e a
sua referência
central é Kant.
Hans Kelsen, apesar de bastante influenciado pelo
kantismo, afirma,
ao contrário do pensador de Königsberg, que a
justiça só é observada
na norma do direito positivo. Em termos universais,
a questão deve
ser tratada pela ética, pois os valores que os
homens portam são
múltiplos, e, portanto, o critério de justiça é
sempre relativo a muitos
sujeitos. O relativismo de Kelsen não conduz à
rejeição de toda a
moral, como propõem seus críticos; afirma, sim, a
autonomia moral
do homem e a necessidade de um acordo sobre valores.
Kant propõe uma fundamentação racional do direito,
com base no
imperativo categórico. Em A Crítica da Razão Prática
(1788), ele
argumenta que apesar da impossibilidade cognitiva de
afirmar algo
sobre a coisa em si; no campo da ética, ao
contrário, é possível a
formulação de um juízo categórico. Um imperativo ao
qual estão
ligados a ética e o direito; um juízo sintético a
priori, que se constitui
na base da moral e do direito, ou do foro interno e
externo, do sujeito.
Age, pois, como legislador e súdito, de sua lei! A
lei moral é a lei da
liberdade quando o indivíduo obedece a um princípio,
não por medo
da coerção, mas por um sentimento íntimo de dever. A
autonomia da
razão prática expressa a própria realização das
regras presentes na
forma da lei: o respeito pela razão e pelo sujeito
racional.
O mundo ético, nos termos kantianos, é aquele no
qual se realiza a
coexistência de pessoas emancipadas pela razão,
vivendo em respeito
mútuo, exercendo seus direitos e observando seus
deveres. O homem
como sujeito, movido pela “razão pura”, regula sua
conduta pela
“razão prática”, convivendo, assim, sob o direito,
com os demais. Ao
agir, ele deve fazer da máxima de sua ação um
princípio de legislação
universal e não considerar o homem como um
instrumento, mas como
um fim em si mesmo; nesses termos Kant define o
imperativo
categórico. Alcançar uma legislação universal a
partir da submissão
da ação ao imperativo categórico implica na
convergência entre as
ações individuais, harmonizadas em direitos e
deveres, sob uma lei
comum. Kant aspira à Paz Perpétua entre os povos,
com base no
mesmos princípios racionais aplicados ao indivíduo –
age de tal modo
que tenha sempre a humanidade como fim.
Kelsen recua diante das proposições kantianas sobre
uma ética
universal convergente com o direito por considerá-la
de caráter
metafísico (Kelsen, 2000f:354), ficando o estudo dos
princípios e
valores a cargo da deontologia. O máximo admitido
por Kelsen é
que o objetivo dos ordenamentos jurídicos em seu
conjunto é o
princípio eudemonista. O conceito de eudemonia, ou
satisfação, é o
objetivo último de todo o direito, segundo sua
argumentação. Desse
modo, com o objetivo alcançado, plenamente
satisfeito, o propósito
para a existência da norma jurídica está realizado.
Enquanto a teoria pura do direito, baseada no
relativismo axiológico,
não hierarquiza os regimes jurídico-políticos,
limitando-se a constatar
a sua existência e a estudar a sua lógica interna, a
teoria política de
Kelsen eleva a democracia como a forma mais racional
de elaboração
das normas jurídicas. Regime dotado de procedimento
regrado e
previsibilidade, no qual os indivíduos se reconhecem
como
essencialmente livres e iguais, tal como exige o
imperativo categórico,
e buscam preservar essa condição. A lição maior do
jurista vienense,
enfim, é a de que o homem, como ser racional,
realiza plenamente a
sua racionalidade no Estado de Direito Democrático;
nesses termos,
portanto, Hans Kelsen não se encontra tão distante
de Immanuel
Kant como à primeira vista poderia ou teria desejado
parecer.
(Recebido para publicação em novembro de 2006)
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